2.21.2012

COMO PUMAS ENTRELAÇADOS NAS SANDÁLIAS DE HUASCAR (IMPÉRIO INCA)



                                




Agora, em nosso regresso de quinhentos anos no tempo, ao Tahuantinsuyo, vamos ao palácio para encontrar o Inca ... O último Inca... Huascar.

O Palácio Real do Inca, chamado Cuusmanco, tem duas portas magníficas, uma na entrada e uma mais interior, e sua obra é toda em cantaria bem lavrada.
Na primeira porta, há dois mil soldados de Guarda com o seu capitão. Estes soldados são privilegiados e isentos de serviços pessoais, os capitães, que os comandam, são pessoas importantes, de grande autoridade (1).

Depois dessa primeira porta existe uma praça, na qual podem entrar os que vem de fora, acompanhando o Inca, detendo-se, ali quando ele entra com os quatro orelhões de seu conselho, atravessando a segunda porta, na qual existe uma outra guarda, esta composta, apenas, de pessoas naturais da cidade de Cuzco (2). Para além dessa porta, um outro grande pátio, destinado aos oficiais do Palácio e os que tem ofícios regulares dentro dele, que ficam aguardando ordens, em razão de seu ofício.
Junto a essa segunda porta, onde está a armaria (3), com todos os tipos de armas, ficam cem capitães, dos melhores na guerra, exercitados nela, os quais são mantidos prontos para qualquer ocasião que se apresente.

Em seguida, as salas, recâmaras e aposentos, onde o Inca vive, cheio de alegria e contentamento, com sua esposa, com saída para os jardins onde há árvores com todos os tipos de aves e pássaros cantando; pumas, onças e outros gatos selvagens e todos os tipos de feras e animais encontrados no Tahuantinsuyo. Os quartos, amplos e espaçosos, lavrados com maravilhoso artifício porque, como não há cortinas ou tapeçarias, as paredes são esculpidas com ricos trabalhos, decoradas com muito ouro e estampas das imagens e feitos dos ancestrais; as clarabóias e janelas são guarnecidas com ouro e prata e pedras preciosas.


Há no palácio uma câmara do tesouro, a Capac Marca Huasi (4), onde são guardadas as jóias e pedras preciosas do senhor. Nesse aposento estão todas as ricas vestes do Inca, de finíssimo Cumbi (5), e todas as coisas relativas ao adorno de sua pessoa - não apenas as suas jóias de preço inestimável, como peças de ouro e prata do serviço usado nos aparadores do palácio. Com cinquenta camareiros encarregados e  um contador-chefe para liderá-los, uma espécie de inspetor para vistoriar, minuciosamente, cada detalhe do serviço; ou seja, um tucuiricuc ou cuipucamayoc.
Ele é encarregado das chaves de algumas portas (6), mas não pode abri-las sem estar na presença de seus  companheiros que, por sua vez, têm suas próprias chaves.

Existem vinte e cinco roupeiros, de doze a quinze anos,  filhos dos curacas (chefes) e pessoas importantes, muito bem tratados e ricamente vestidos, que cuidam das roupas do Inca, preparando-as e separando-as de acordo com as cores ordenadas. Eles também levam os pratos à mesa quando ele se alimenta.


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O Inca atravessara os umbrais do aposento com um ar imponente e orgulhoso no semblante. Como outros Incas, ele tem estatura media, pele levemente bronzeada; o cabelo, um pouco mais curto do que outros, no reino, que os mantém mais compridos. Não tem barba (7), é sério, circunspecto, mas também tranquilo e discreto. E, como, em geral, todos os Incas, se expressa muito bem. (8)

Vestido costumeiramente com uma camisa de Cumbi azul, maravilhosamente elaborada com um trabalho de Tocapo (9), com tons sutis de verde e roxo. A manta, a yacolla, do mesmo Cumbi, mas sem qualquer trabalho, descansa nos braços de um roupeiro, que aguarda, pronto para vesti-la nele, se assim desejar o senhor.


Na cabeça, ele traz o llaitu (10), com as cores do arco-íris, as mesmas do Tahuantinsuyo, incrustrado de pedras preciosas e, pendendo do llaitu,  o vermelho vivo do  Cumbi finíssimo da borla imperial, a mascapaicha - a insígnia real e coroa, com os seus fios de ouro e as sagradas penas do qoriqenqe.
Calçado com sandálias que cobrem as solas dos pés e se enlaçam no meio do pé com as argolas pelo calcanhar e onde os laços são travados coloca-se algumas cabeças de puma, feitas de ouro e pedras de esmeralda, ricamente trabalhadas.
Neste momento, o copeiro, o ancosanaymaci, um dos orelhões mais importantes do império, aproxima-se, carregando um copo feito de madeira preciosa, talvez cheio de chicha, talvez de água, para servir ao supremo Inca do Tahuantinsuyo.

O último Inca... Huascar... que permanece em silêncio, observando a luz do sol que vem dos jardins...



 
                                      (Fray Martín de Murúa: Historia general del Perú)



                                                                      



                                                                         ################




(1) Quando o Inca ia à Serra, iam junto com sua pessoa, e recebiam rações regulares e avantajados pagamentos, e  andavam, geralmente, acompanhados pelos filhos dos curacas e pessoas importantes, muito lucidamente adereçados. (Murtua)

(2) orelhões e parentes, descendentes do Inca, em quem ele confiava, e eram aqueles encarregados de criar e ensinar os meninos, filhos dos governadores e pessoas importantes de todo o Reino para que trabalhassem no serviço do Inca, assistindo-o na corte.
3) a saber flechas, arcos, lanças, macanas, champis, espadas, capacetes, fundas, escudos pesados, tudo arranjado em perfeita ordem e disposição.

4) literalmente - aposento rico do tesouro - tinha esse  tesoureiro ou contador-mor, um grande salário e muito proveito, porque o Inca lhe dava muitas roupas das suas próprias, gado e chácaras, e dessas doações ele ficava com duas partes e uma era para seus companheiros.

(5) Cumbi - tecido finamente elaborado com lã de vicunha.

(6) portas de madeira.

(7) os incas não tinham qualquer tipo de barba, porque se alguma surgisse, com pinças, chamadas tiranas, as arrancavam. (Murúa)

(8) Eu descrevi Huascar de acordo com as características dos Incas descritas por Frei Murúa em seu livro. Porém, gostaria de fazer uma ressalva, chamando a atenção para o fato de que os Incas de sangue puro, naquela época, já estavam extintos, ou praticamente extintos, pois os que não foram mortos pelos exércitos de Atahualpa (que era só meio Inca, apenas por parte de pai e é preciso lembrar que, para ser Inca, era preciso ter sangue puro), foram dizimados pelos espanhóis, mortos por doenças e, os que restaram, misturaram o sangue, ou com os próprios espanhóis, ou com os Incas de privilégio, que não eram Incas de sangue, ou com os povos circundantes, que serviam aos Incas. Alguns autores afirmam, o que eu mesma sou levada a concordar, que os Incas eram brancos; alguns dizem 'bem brancos'. 

(9) As ñustas (Virgens do Templo do Sol), que fiavam de modo extremamente delicado para tecer as roupas do Inca e esculpiam neles maravilhosos labores de tocapo, que eles dizem que significa diversidade de trabalhos, com mil matizes de grande delicadeza, às vezes de cor roxa, às vezes verde, às vezes azul, outras vezes vermelho vivo.
Tocapu ou tocapo: pequenas figuras de grande padrão com certos desenhos repetidos, com os quais adornavam as vestes mais luxuosas. Trajes típicos do Peru e mantas, muitas vezes contêm esses símbolos abstratos e geométricos que se encontram discretamente dentro de um quadro retangular ou quadrado. Na roupa, cada tocapu poderia ser colocado em um padrão linear ao longo da cintura ou sobre uma grade que cobre toda a superfície. Eram prerrogativa dos membros do clã imperial Inca e dos indivíduos da elite, acredita-se ter sido um privilégio das pessoas que utilizavam estas peças de vestuário e que eles controlavam uma variedade de etnias no Império (Rebecca Arte em pedra de Miller. Dos Andes Chavin de Inca, Nova York. Thames and Hudson, 1995, p. 210).

(10) O llauto era uma espécie de turbante com as cores do Tahuantinsuyo (Império Inca), tecido com lã de vicunha, que dava de cinco a seis voltas na cabeça e sustentava na frente uma  borla de lã, chamada mascapaicha que, juntamente com penas do qoriqenqe (ave sagrada cujo símbolo levava na parte da frente) e topayauri (uma espécie de cetro) constituíam as vestes particulares do Sapa Inca.

  BIBLIOGRAFIA 
  
Fray Martín de Murúa: Historia general del Perú. Origen y descendencia de los Incas (1611). 
  
e para o tocapo: 
  
Rebecca Stone-Miller. Arte de los Andes de Chavín de Inca, Nueva York. Thames and Hudson, 1995, p. 210).