2.09.2011

SAYCUSCA - A PEDRA QUE CHORA SANGUE


Conta a lenda que...


 As pedras usadas para construir a fortaleza de Sacsayhuaman vieram do Reino de Quito (atual Equador) que, naquela época, fora incorporado ao Império Inca. O empenho havia sido grande para que essas pedras pudessem ser trazidas de tão longa distância. O grau de dificuldade aumentava quanto maior o tamanho dessas rochas gigantescas e o esforço humano empregado ultrapassava qualquer modo prático de descrevê-lo.
Arrancadas da cordilheira quitenha, as pedras desenhavam um trajeto cinzento que se esboçava, através das trilhas, levantando nuvens de poeira - misturando-se ao suor dos carregadores de Quito. O céu azul-claro não dava margem a cúmulos de nenhuma espécie, deixando que o sol reinasse, soberano, todo o tempo, no silêncio entrecortado de gritos e lamentos. 
Tudo movia-se, lentamente, ao redor das imensas rochas transportadas, com dificuldade, pelos milhares de braços que as direcionavam, comandados pelos soldados do príncipe Urco, filho de Wiracocha Inca.
O canto dos pássaros, o som das cascatas, o apelo da montanha com suas flautas no pastoreio, tudo perdia-se, pois a canção era o lamento. Como notas de um hino militar compassado - poeira, suor, gritos - o sopé dos Andes vibrando um arremedo de tremor. O que seria insuportável, ordenava-se, no caos, como criação...
Semanas sucederam-se, sem descanso, no vento e na coragem, diluindo o tempo no cansaço dos homens que pareciam marchar dentro de um outro mundo, ausentes da presença do futuro Inca.


Assim continua a lenda...


Ao jovem futuro Inca, além de um cortejo real, seguiam inúmeros carregadores de jarros que serviam a bebida sagrada, repetidamente, ao filho do Filho do Sol.


É o que diz a lenda...


O grande disco de ouro, com a imagem do Inti (Sol), que encimava a liteira do príncipe, refletia o sol de modo efusivo, alongando, lindamente, seus raios toda vez que ele se mexia, acomodando-se na cadeira. 
Os trabalhadores seguiam, à frente, conduzindo o maior de todos os pedaços de rocha, gigantesco megálito, cuja forma retangular sugeria que fosse um dos menires (1) adorados pelos canharis (2). Fruto de uma antiga erupção vulcânica, a pedra parecia dificultar o transporte, como deus arrancado de seu altar de adoração e de seu povo, oscilando a cada movimento, como se quisesse cravar-se, ali mesmo, expondo suas marcas de fogo e ferro.
A procissão arrastava-se pelas encostas e planícies, cheia de lamentos, como orações, inventando novos caminhos sobre os antigos, até que caísse a noite. O anoitecer trazia o alento, o descanso e as forças renovadas para um novo dia.


Continua a lenda...


Os homens da guarda imperial, diante da obstinação de seu senhor, murmuravam que ele havia enlouquecido, ou pelo excesso de bebida ou pela ação do sol equatorial. E a empreitada até o sul parecia piorar a situação do príncipe, agravando seu estado de tristeza e loucura. Dentro da noite, algo parecia atormentá-lo. E, na medida em que se afastava de seu lugar de origem, a pedra parecia aumentar de peso. Apesar dos esforços consideráveis empregados pelos carregadores, ela não avançava. Até que não puderam movê-la mais. Quanto mais o príncipe queria levá-la, maior parecia ser a resistência da rocha. Então, chamaram-na Saycusca - pedra cansada.


A fortaleza de Sacsayhuaman apareceu no horizonte, com seus blocos de pedra enormes que, no entanto, pareciam simples rochas diante das que foram trazidas por Urco. O feito foi descrito por Garcilaso de La Vega, em seus Comentarios Reales; assim também descreveu ele o modo como tudo foi destruído, algum tempo depois, antes mesmo de terminada a fortaleza, pelos espanhóis que, cortaram as pedras, principalmente as trabalhadas, para fazer suas casas em Cusco. Tiraram as pedras maiores, que serviam de viga, para fazer os umbrais e as menores, para paredes.  O próprio Garcilaso relata essa lenda.


Enfim... Dizem que a tal pedra falou, antes que chegassem à fortaleza, dizendo saycunin, que significa cansei-me - e chorou sangue. Os guardas ordenaram aos carregadores que prosseguissem mas, os infelizes não podiam movê-la, grudada na terra. Quando pensaram que podiam movê-la, as cordas arrebentaram e o monólito precipitou-se sobre os que iam à frente, matando três ou quatro mil carregadores, rolando por várias centenas de metros. Parou perto de Sacsayhuaman e ficou, ali, toda coberta de sangue humano. Ficou ali, tosca, tal qual fora retirada de seu lugar de origem, sem nunca ser trabalhada, não chegando, jamais, a ser colocada na fortaleza.




Conta a lenda que diante da mortandade e da resistência de Saycusca, os carregadores, que eram de Quito, revoltaram-se contra os soldados, matando-os com suas próprias armas. Que eles, inspirados pela presença sangrenta, teriam travado uma verdadeira batalha em volta do megálito, voltando-se, depois, contra o próprio futuro Inca, degolando-o e abandonando seu cadáver aos pés da Saycusca.
Pela lenda que eu li, contam algumas coisas mais, porém, já é o bastante.
O que importa é que a pedra cansada ficou no lugar, olhando a História passar por ela, com seus olhos megalíticos cheios de lágrimas de sangue.

Assim a descreveu Garcilaso"Em um dos cantos de cima tem um buraco ou dois que, se bem me lembro, atravessam de um lado a outro. Dizem os índios que aqueles buracos são os olhos da pedra pelos quais chorou sangue. Do pó que se acumula nos buracos e da água da chuva e escorre pedra abaixo, forma-se uma mancha ou sinal vermelho, porque a terra é vermelha naquele local.  Este é o sangue que derramou quando chorou ".

Coberta de lágrimas, do sangue dos homens de Quito, substâncias ferruginosas ou pó vermelho, Saycusca, a pedra cansada, viu passar a História, nos últimos quinhentos anos, de forma trágica e esfacelada, qual ela mesma, parte arrancada da cordilheira equatorial, sem chegar ao destino e, vendo com seus olhos de pedra a fortaleza de Sacsayhuaman ser cortada em pedaços e espalhada, aos quatro suyos, como o próprio Tahuantinsuyo, rompido pelas mãos de estrangeiros. 
Chora, ainda, assim como o povo, mergulhado dentro de uma noite que já dura quinhentos anos.


Como diz Garcilaso, a verdade histórica, como o contavam os Incas amautas, que eram os sábios, filósofos e doutores nas coisas de sua gente, é que a pedra era trazida por mais de vinte mil homens que a arrastavam com grandes cordas: metade deles mantinham-na com as cordas pela frente e a outra metade entrelaçadas atrás, para que não deslizasse encosta abaixo. Que, por descuido, rolou matando três ou quatro mil e que o sangue que chorou, choraram eles e que cansou-se porque, na verdade, eles cansaram. O cronista não diz nada sobre Urco, sua morte ou sobre a batalha travada ali. Fica por conta da lenda...




Através da famosa Avenida de Los Volcanes (Avenida dos Vulcões), a partir de Quito, nossa admiração perde as palavras com os onze dos vinte e cinco vulcões do Equador: Carihuairazo, Pasachoa, Ilinizas e Cotopaxi (perfeito cone de neves eternas), atravessando El Arenal, um campo de cinzas, seguindo o caminho através do bosque enevoado, talvez parando para descansar na Cascada del Cielo.

Pelas desalentadas paisagens ao redor do vulcão Altar e da Cordilheira dos Andes, podemos sentir-nos sem fôlego, deslizando para dentro da lenda, transportados a centenas de anos no passado. 


Atravesse o pântano e as belezas das lagoas negras de Minzas.


Com umas três horas a pé na subida para o vulcão Tungurahua, a três mil e oitocentos metros do nível do mar, podemos redesenhar o caminho para admirar não só esse vulcão, bem como o Cotopaxi, o Cerro Hermoso e o Parque Nacional de Llanganates, enchendo nossos olhos com as mais belas cores, flores, orquídeas, bosques, animais e lindas aves. No refúgio do vulcão, a paisagem lunar talvez cause um impacto irreversível em nossas almas com seu vazio de cinzas e pedras vulcânicas - o som do vulcão nos leva a imaginar a cratera, que está a apenas a pouco mais de dois quilômetros de distância, em constante erupção.


Aos pés do Tungurahua, a poucos quilômetros da floresta amazônica, no Parque Nacional do Sangay, passamos por planícies verdejantes na província de Guayas com suas plantações de banana e campos de arroz, atravessando a diversidade do sopé da Cordilheira dos Andes subindo pelos gélidos e áridos desertos de areia e pedra, a poucos quilômetros do Chimborazo.


O Sangay, em  língua quechua "o assustador", também conhecido como Macas, Sanagay ou Sangai, cuja erupção iniciada em 1934 ainda está em andamento, localiza-se no limite sul da Zona Vulcânica do Norte, um dos arcos do cinturão vulcânico dos Andes, e esta sua posição sobre dois grandes pedaços de crosta parece ser a responsável por sua intensa atividade. Em aproximadamente quinhentos mil anos o Sangay tem sido marcado pela instabilidade, pois duas versões anteriores da montanha foram destruídas em grandes colapsos maciços que deixaram evidências pelos arredores.
Mesmo assim, na beleza aterradora de tamanho perigo, talvez devido à sua remota localização, o Sangay possui significativa relevância biológica, protegida como parte do Parque Nacional Sangay. Como um Apu recluso, mantém-se dentro de seu isolamento, resguardado dentro das más condições climáticas, inundações dos rios e o perigo de quedas que afastam a maioria daqueles que desejam escalá-lo, vencendo-o.



Como eterna lenda...


                                                                                   


(1) Menir ou menhir - monumento megalítico do período neolítico, de forma alongada, altura variável de até cerca de onze metros e fixado verticalmente no solo. Podia servir de marco astronômico ou representar totem ou espíritos.

(2) Canharis - A nação Canhari habitava o território que hoje compreende as duas províncias do Azuay e de Canhar, no atual Equador.

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*QUITO, PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE: A capital do Equador foi a primeira cidade do mundo a ser tombada pela UNESCO como patrimônio da Humanidade, em setembro de 1978. É uma das mais belas capitais da América do Sul com 10.000 anos de história. O seu Centro Histórico é o maior do continente, com mais de 30 prédios religiosos tais como igrejas, mosteiros e conventos. A PLAZA GRANDE (1535), monumento dedicado aos heróis que morreram, em 2 de agosto de 1810, assassinados pelos espanhóis, ma primeira tentativa de libertação. 
O Palácio Arcebispal (1700) e seus arcos; A Casa do Prefeito (1534); o Hotel Plaza Grande (1936); O Convento de Freiras da Conceição (1575); Palácio de Governo (1612) e Catedral Primada (1535); Rua García Moreno passando pela Igrejinha de El Sagrário, ao lado da catedral; O Centro Cultural Metropolitano, antigo prédio dos jesuítas (construído por volta de 1586). 
A Igreja da Companhia de Jesus (1605), a maior obra prima da arquitetura colonial quitenha - fachada lavrada em pedra (1722) e o interior coberto de ouro. O Convento de São Francisco, o mais antigo da América do Sul (1535),  possuindo a maior coleção de Arte Sacra da região, o Museu da Cidade, os Conventos de São Domingos e Santo Agostinho.